Dia de São José..., Pai!

"Era dia de comício da oposição em Alma, presidido por minha avó materna, Beatriz, em representação de meu avô Geraldo Pais, chefe da Carbonária e fundador da República. O falecido tinha sido íntimo de Afonso Costa e era ainda a referência principal da tribo reviralhista. (…) A minha avó sentava-me ao pé dela e de certo modo eu era tratado como príncipe herdeiro. (…)
Tudo isto se passava numa casa em que o chefe de família, meu pai, Lourenço de Faria, era monárquico. Liberal, gostava ele de sublinhar. Talvez porque meu pai não pudesse ou não quisesse competir com a influência da minha avó. (…) De modo que eu estava praticamente condenado a ser republicano e revolucionário.
Só que naquele dia não havia apenas o tão esperado comício da oposição. À mesma hora, o Beira Rio jogava contra o Vista Alegre. E por nada deste mundo, muito menos por causa dum comício eu estava disposto a perder o jogo no velho campo de S. Cristóvão.
Meu pai, menos por falta de coragem do que por filosofia de vida, não estava para lhes fazer frente. Mas nesse dia senti que secretamente admirava a minha resistência. E às duas por três, perante tal insistência de uma e de outra, dei por mim a perguntar-me porque raio é que, afinal, eu não havia de ser, também, monárquico?
Meu pai ouvia, calado. De quando em vez piscava-me o olho. E a minha avó porque tens de ir, e a minha mãe era o que faltava que não. Até que, subitamente meu pai explodiu: Não vai, não quer ir não vai, ele é meu filho e quem decide sou eu. Vamos os dois ao jogo.
E fomos!"

(Excerto retirado do livro “Alma” de Manuel Alegre) – As memórias de infância, as emoções intensas dum tempo sem fim, princípios que norteiam a vida, nostalgia de lugares e acontecimentos, ecos de um Portugal submerso na simplicidade e ilusão, dissabores que robusteceram e cunharam a alma duma criança e de um povo, na voz de Manuel Alegre.


São poucas as memórias de cumplicidades vividas com o meu pai, talvez pela diferença de idade ou pela rudeza do caminho, esmorecido no seu fulgor, foi aprimorando a nobreza e obstinação de um cristão submisso e pai protetor!
Sem ideais políticos ou afeições desportivas entusiastas, entregou o seu ardor à devoção religiosa, que lhe embutia coragem e a necessária espiritualidade…
As poucas palavras não o impediram de transmitir uma mensagem de amor, em gestos simples evidenciou o seu apego à família, sem desnudar o sentimento foi relutante na sua missão…  
Também era a minha mãe a mais interveniente, mais próxima na sua maneira meiga e incisiva de exercer a influência maternal, mas o meu pai, mais discreto, também se manifestava com vigor, esporadicamente ecoava o seu rugido paternal, levantava a sua voz aos céus e nós, atentos, seguíamos com o olhar o seu culto a Deus!

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